Em meio à falta de apoio já conhecido à pesquisa no Brasil, ficamos
muito contentes quando vemos que não só produzimos ciência de qualidade, mas
vamos longe. Um grupo da USP publicou no dia 11 de maio (2016) um estudo que
consolida a força da ciência brasileira e sobretudo, auxilia na compreensão de
como se comporta o Zika Vírus e a sua relação com a microcefalia.
O trabalho foi publicado no site da revista Nature (leia o artigo clicando aqui), uma das revistas mais
importantes do meio científico. Nele, há as evidências que faltavam para a
comprovação de que o Zika Vírus causa a microcefalia, e que a cepa brasileira
(apresentada no artigo como ZIKBR) é mais agressiva do que a
africana, isolada pela primeira vez em 1947.
Além de todo esse prestígio e orgulho para a ciência brasileira, é
também um grande orgulho para a classe biomédica. Isso porque, duas futuras
biomédicas fizeram parte do grupo que foi notícia em todo o mundo.
Orientadas pela neurocientista Profa. Dra. Patrícia Beltrão Braga, chefe
do Laboratório de Células-Tronco da Faculdade de Medicina Veterinária e
Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP), Cecília Benazzato e Nathalia
Almeida ainda nem se formaram mas já garantiram uma publicação na Nature em seus currículos. E hoje, a
conversa aqui é com elas!
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Cecília (esquerda) e Nathalia (direita). Estudantes de Biomedicina que tiveram sua primeira publicação na Nature. |
1. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Cecília
e Nathalia, como vocês escolheram e onde cursam Biomedicina?
Cecília: Curso Biomedicina na FMU, e estou no último semestre. Escolhi biomedicina após passar por 2 situações em família onde houve erro médico e biomédico. No primeiro caso, achei que poderia simplesmente ter acontecido, mas no segundo, decidi estudar a área e, com isso, tentar evitar que pessoas caiam em situações semelhantes as que passei.
Nathalia:
Eu curso Biomedicina na
UNIFESP e estou fazendo o estágio obrigatório em pesquisa (tcc) na USP. Comecei
o terceiro ano do ensino médio querendo relações internacionais, depois mudei
pra engenharia, administração e no meio do ano, não fazia ideia de qual
carreira seguir. Em junho, precisava tomar uma decisão para começar a me
inscrever para os vestibulares. Então, decidi pesquisar curso por curso
oferecido pelas grandes universidade de SP, até que me deparei com Biomedicina.
De modo muito clichê, foi amor à primeira vista. Vi muito da minha
personalidade no curso, e notei que minha paixão pelas ciências da saúde sempre
esteve lá. Antes da biomedicina, eu acreditava que só conseguiria me aprofundar
nessa ciência cursando medicina ou biologia. Biomedicina foi o encaixe perfeito
pra mim.
2. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Como
começou a paixão por neurociência e como foram parar no grupo que fez essa
publicação memorável na Nature?
Cecília:
Eu sempre
fiquei fascinada em como uma “simples” massa pode comandar vários sistemas
inteiros e extremamente complexos. O cérebro me fascina desde sua forma até seu
metabolismo. As aulas de fisiologia e anatomia relacionadas ao tema eram as que
mais me prendiam e me encantavam. O que sempre mais me encantou foram as
doenças degenerativas, e a forma que elas atuavam. Com isso, fiz meu TCC nessa
área. Conheci o laboratório de células-tronco na USP através de uma colega de
classe, que tem uma filha com autismo. Ela, sabendo dessa minha paixão, me
indicou ao laboratório.
Nathalia:
O funcionamento do sistema
nervoso sempre foi algo que me hipnotizava, principalmente entender os
mecanismos biológicos que moldam a personalidade do ser humano. Quando entrei
na faculdade, mal podia esperar para aprender mais e mais sobre esse sistema
incrível, que até hoje me fascina. Pesquisando muito sobre qual área das
neurociências seguir, me apaixonei pelo autismo. Na UNIFESP, infelizmente, não
existem muitos laboratórios com foco em pesquisa nesse transtorno. Através de
amigos e professores, conheci a Profª. Drª. Patrícia Beltrão Braga, fundadora
do projeto a fada do dente. Então, decidi fazer o estágio de tcc aqui.
3. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Qual
era a linha de pesquisa inicial como alunas da Dra.
Patricia? E como será o caminho após essa
pausa para a publicação do artigo do ZIKBR?
Cecília:
Entrei no laboratório para desenvolver um protocolo
de minicérebros a partir de células-tronco pluripotentes induzidas nos 6
últimos meses da faculdade. Com o artigo do zika vírus, não terei tempo hábil
para continuar esse projeto. Porém, estou no processo seletivo para o mestrado
e darei início a uma nova pesquisa.
Nathalia:
Eu vim para esse
laboratório para desenvolver um projeto de pesquisa que envolve caracterizar
minicérebros humanos produzidos a partir de células-tronco pluripotentes
induzidas, que tinha previsão de início em fevereiro. Porém, devido a urgência
em obter informações científicas a respeito do zika, tivemos que deixar esse
projeto em standby. Retomamos o projeto em maio, afinal, preciso dele pra me
formar! Pretendemos utilizar os resultados do meu projeto em novos estudos com
o vírus.
4. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Aliás,
qual foi a sensação de publicar em uma das revistas científicas mais influentes?
Vocês têm ideia de como isso influenciará no currículo de vocês?
Cecília:
Às vezes, eu
ainda paro pra pensar e associar a informação. É algo tão incrível que não sei
se consigo passar isso em palavras. É uma recompensa enorme diante todo o
trabalho que tivemos. É incrível!
Nathalia:
Palavras não
conseguem explicar a sensação de dever cumprido. Todo dia entro no site pra ver
se não foi tudo um sonho. Nunca na minha vida imaginei que teria a minha
primeira publicação na revista científica de maior impacto do mundo. É como
andar nas nuvens. Com certeza, é uma motivação enorme para o futuro.
5. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Quais
as dificuldades que vocês enfrentaram, tanto na vida pessoal quanto na pesquisa
em si, para a publicação?
Cecília:
Por estar nos últimos meses
da faculdade, tive que deixar de lado alguns momentos de descanso para que tudo
acontecesse dentro dos conformes. Tive que conciliar casa, laboratório e
estágio à noite para tudo dar certo. Houve dias em que ficávamos até tarde da
noite fazendo alguma etapa do trabalho. Não encaro isso como dificuldade,
encaro mais como esforço para ser recompensado no fim.
Nathalia:
Acho que todo o
cientista não vê muito problema em pausar um pouco a vida pessoal e viver para
um propósito maior. Meus pais moram em Guarulhos, e para eu não perder tempo
com locomoção, tive que alugar uma casa próximo à USP, para ter completa
disponibilidade para o projeto e para o laboratório. A única renda de casa vem
do meu pai, então não foi fácil bancar aluguel. Os dias no laboratório eram
muito longos, sempre tinha algo a ser feito. E estávamos correndo contra o
relógio para ter resultados o mais rápido possível. Cecília e eu estamos
prestes a nos formar. É óbvio que não temos a experiência necessária para
desenvolver um projeto com a responsabilidade de um doutorando. Porém, todas as
etapas deveriam ser feitas com a maior concentração do mundo para nada dar
errado. Aquela pressão e medo dos iniciantes abriram espaço para um grande
crescimento profissional. No fim, tudo deu certo e tivemos uma recompensa
magnífica.
6. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Vocês
ficaram responsáveis por qual parte do trabalho?
Cecília
e Nathalia: Ficamos
responsáveis pela extração de RNA, quantificação, e montagem das figuras que
foram para o artigo. Além disso, também ficamos responsáveis pela manutenção e
cuidado com as culturas do projeto “A Fada do Dente”, e pela organização do
laboratório.
7. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Nathalia,
você esteve na Inglaterra, na Universidade de Sheffield. Como foi essa
experiência?
Nathalia:
Foi incrível! Sempre foi um sonho
vivenciar a vida universitária no exterior. As diferenças que reparei foram
gritantes, principalmente em relação à grade curricular do curso de Biomedicina
na Inglaterra. Na UNIFESP, a grade ainda é fechada, mas na Inglaterra, é
possível moldar o seu currículo de acordo com o seu interesse, incluindo
matérias de outros cursos sem nenhuma relação com o seu diploma. Por exemplo,
eu pude cursar matérias dos cursos de filosofia, biologia e psicologia, o que
me permitiu desenvolver linhas de pensamento distintas das que já estavam tão
intrínsecas em nós, biomédicos. Não obstante, tive a oportunidade de fazer
pesquisa na área de esquizofrenia com um mestrando da Turquia, além de visitar
laboratórios na área de pesquisa básica. Conversei bastante com os
pesquisadores de lá, e achei utópica a liberdade de pesquisa que eles têm, pois
muitas das preocupações que nós vivemos no Brasil são inexistentes lá, como,
por exemplo, a burocracia na compra de materiais.
8. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Quais
são os planos para quando se formarem?
Cecília:
Por enquanto, pretendo continuar no
laboratório de células-tronco da USP com meu projeto de mestrado.
Nathalia: Quero seguir pesquisa fora do Brasil, mas ainda não tenho nada concreto.
9. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Na
visão de vocês, quais são as dificuldades enfrentadas pelos cientistas
brasileiros atualmente? É possível produzir
ciência de qualidade no Brasil?
Cecília:
Claro que é possível, porém
é muito mais difícil. Nos laboratórios de fora, é mais fácil de conseguir
reagentes, meios de cultura, anticorpos do que aqui no Brasil, uma vez que
esses produtos são importados. A dificuldade de importação, o tempo que leva,
tudo isso aumenta e muito a dificuldade de manter um padrão de qualidade.
Nathalia:
A grande
dificuldade é a desvalorização da pesquisa no Brasil. Muitos pesquisadores
encontram certas etapas durante o desenvolvimento do projeto que servem apenas
para dificultar a realização da pesquisa, como toda a burocracia acerca do
projeto, demora para entrega de material, entre outros. O resultado disso é a
exportação de pesquisadores excelentes para países onde essas preocupações não
são tão desmotivadoras. É necessário o desenvolvimento de políticas que
valorizem e incentivem o trabalho desse profissional no nosso país.
Acompanhando a literatura sobre Zika, é possível perceber a quantidade de
artigos publicados em universidades do Estados Unidos, por exemplo. Se é um
cenário ocorrendo no nosso país, por que os estudos estão sendo feitos no
exterior? Nosso estudo veio para comprovar que é possível, sim, brasileiros
publicarem trabalhos de qualidade e de impacto, apesar das dificuldades
encontradas.
10. BIOMEDICINA EM AÇÃO: Dizem que a Biomedicina é a profissão do futuro. O
que vocês acham disso? Mudariam alguma coisa para melhorar a nossa área?
Cecília: Acho que é a profissão que mais se adapta bem ao
futuro, uma vez que ela tem várias áreas de atuação. Atualmente, o conselho
resolve muito bem as questões éticas, e espero que no futuro, isso perpetue.
Nathalia: Eu fiz parte do Centro Acadêmico de Biomedicina da
UNIFESP, onde pude entender um pouco melhor sobre o curso, suas diversas áreas
de atuação, além de criar contatos com professores e coordenadores. Esse ano, o
curso está comemorando 50 anos, e sua evolução desde a primeira turma formada
foi impressionante. A profissão é rica em acomodar as mais distintas
necessidades do profissional, e isso é algo que garante um potencial enorme
para a profissão. O perfil dos estudantes muda a cada turma, e acho que faz uma
grande diferença ter um contato direto com os coordenadores para que eles
percebam as mudanças necessárias para o futuro do curso. Por esse motivo,
acredito que o curso tem um grande potencial tanto para a área da indústria e
academia, quanto para áreas novas que estão surgindo. Os estudantes precisam
cobrar de suas universidades essa transparência com a coordenação para que as
necessidades deles sejam ouvidas, o que só vai enriquecer a profissão.
Considerações finais
Nathalia: A minha recomendação é que estudantes em ano de
vestibular pesquisem incansavelmente sobre o curso que querem, conversem com
estudantes do curso, com o centro acadêmico, e principalmente com
profissionais. É uma decisão que leva tempo, e é preciso conciliar paixão com
interesses pessoais. Pra mim, fica muito claro que quando fazemos algo com
amor, as recompensas vem da onde a gente menos espera. Gostaria de agradecer a
oportunidade de compartilhar um pouco a experiência de duas estudantes de
biomedicina nessa experiência incrível.
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