Você já
ouviu falar da bactéria “comedora de carne”? É assim que a Fasciíte Necrotizante
– ou Necrosante - (FN) é popularmente conhecida. Na verdade, não “tão
popularmente” assim, isso porque é uma doença infecciosa rara, além de ser
muito grave, caracterizada por necrose extensa e de rápida progressão. Os dados
epidemiológicos dessa doença no Brasil e no mundo não são muito confiáveis, mas
o Center for Disease Control (CDC) estima que aproximadamente 700 a 1200
casos ocorrem a cada ano nos Estados Unidos. A dificuldade no
levantamento de dados epidemiológicos se dá principalmente pela dificuldade no
diagnóstico e pela subnotificação dos casos.
A doença foi descrita inicialmente pelo cirurgião militar Joseph
Jones em 1871, mas o termo Fasciíte Necrotizante começou a ser utilizado
somente em 1952, com a finalidade de descrever melhor a sua principal
característica, que é a necrose do tecido subcutâneo profundo e a fáscia, tendo
preservação relativa do músculo subjacente. Há então lesão vascular, trombose e
isquemia - resultantes da ação das citocinas pró-inflamatórias, proteinases e
endotelinas, e uma fase mais avançada, ocorre a destruição de nervos
subcutâneos, tudo isso acompanhado por toxicidade sistêmica grave. O acometimento
dos tecidos mais superficiais e a pele ocorre secundariamente. Ela pode ocorrer
a partir de incisões cirúrgicas, pequenos traumas perfurantes (incluindo
cortes, arranhões, e perfurações devido ao uso de drogas intravenosas), picada
de insetos ou ainda queimaduras. Apesar disso, 20% dos casos não apresentam
nenhum trauma prévio.
Classificação da FN
São descritas duas formas da doença: a primeira delas (FN
tipo I) é geralmente polimicrobiana, causada por bactérias anaeróbias,
anaeróbias facultativas e enterobactérias. A presença desses microrganismos
provoca uma infiltração gasosa do tecido subcutâneo semelhante à gangrena
gasosa, o que também dificulta no diagnóstico diferencial entre a condição de
NF e gangrena gasosa (mionecrose grave), causada por Clostridium sp.
Este é o tipo de NF mais notificado e o mais prevalente em idosos com doença
crônica, como doença renal, cirrose, câncer e principalmente diabetes.
A segunda (FN tipo II) é monomicrobiana, na maioria das
vezes causada por Streptococcus pyogenes (grupo A de Lancefield), e mais
raramente por Staphylococcus aureus que pode ser resistente à meticilina
(MRSA). Esses microrganismos liberam endotoxinas que são responsáveis por
algumas das manifestações clínicas, entre elas a síndrome do choque tóxico (uma
série de reações graves que podem provocar insuficiência renal e morte). Ao contrário
da FN I, a FN II não tem prevalência em uma determinada faixa etária e não está
associada a comorbidades pré-existentes com porta de entrada óbvia, como pé
diabético.
Outras bactérias, embora com menor prevalência, também podem
estar envolvidas. São elas: Pseudomonas spp, Clostridium spp., Aeromonas
e Vibrio vulnificus. São comumente mais virulentos e, portanto, os sintomas
são mais graves. Levantou-se a discussão de um terceiro tipo de classificação,
mas até o momento, nada foi definido.
Quadro clínico
Segundo Schechter e Marangoni (1994), após um período de 24-48
horas surgem as manifestações clínicas que podem ser eritema, edema e dor local,
seguidos de placas azuladas centrais, que pode ou não se apresentar com bolhas
(com pus e sangue). Como apontam Chen L. e equipe (2020), há casos de pacientes
assintomáticos na fase inicial, e quando esses sintomas aparecem, eles podem
ser facilmente confundidos com doenças benignas, como uma irritação da pele ou inflamação
local, limitada.
Depois, essas placas começam a se mostrar gangrenosas, com
escara negra bem delimitada, tudo isso acompanhado de febre alta e prostração.
O prognóstico é ruim, e há uma alta taxa de letalidade (13 a 76%, a depender da
rapidez no diagnóstico e intervenção cirúrgica, antibioticoterápica e doenças pré-existentes).
Além da classificação citada acima, que está relacionada ao
tipo de microrganismo envolvido na infecção, há ainda uma classificação de
acordo com o local de infecção e quadro clínico do paciente.
“A
infiltração microbiana necrosante na fáscia do espaço submandibular, levando a
danos nos tecidos, é chamada de angina
de Ludwig . Uma infecção orofaríngea que causa
tromboflebite séptica secundária da veia jugular interna é denominada síndrome
de Lemierre. A gangrena de Fournier, descrita como
infiltração bacteriana na mucosa gastrointestinal ou uretral, pode progredir
rapidamente para a região perineal. Essas classificações e nomenclaturas
alternativas podem não ter um impacto significativo no manejo clínico imediato
da FN, mas são importantes para fins epidemiológicos” (Chen, L. et al.
2020)
Diagnóstico
O diagnóstico da FN é um grande desafio por ser rara e ter poucos
sinais patognomônicos iniciais, entretanto é muito importante que seja feito
precocemente e que haja intervenção cirúrgica o mais breve possível, a fim de
evitar amputação ou ainda morte do paciente. Pela rapidez com que a intervenção
deve ser feita, o diagnóstico inicial é basicamente clínico, e pode ser
confirmado com achados cirúrgicos e exames laboratoriais.
Pesquisadores de Singapura desenvolveram um Indicador de
Risco Laboratorial para Fasciíte Necrotizante (LRINEC), afim de auxiliar os
profissionais médicos na triagem da doença, utilizando parâmetros laboratoriais
como hemograma (leucocitose com desvio à esquerda e anemia), VHS, proteína C
reativa elevada, hiperglicemia, hipocalcemia, CK aumentada (sugerindo extensão
da infecção para os músculos). Exames de imagem podem ser realizados, mas não
são precisos. Foi estabelecido um score, e uma pontuação de 6 ou mais é
indicativo de FN, mas alguns dos estudos apresentaram falha na precisão do score.
É muito importante também a realização de cultura de
desbridamento da região afetada e hemocultura, para identificação do
microrganismo e melhor conduta de antibioticoterapia; embora o método de
diagnóstico considerado padrão-ouro seja a biópsia da fáscia.
Tratamento
Feito o diagnóstico, a ação precisa ser rápida. Imediatamente
deve-se instituir tratamento com reposição volêmica, desbridamento cirúrgico de
uma área ampla para conter a necrose, antibioticoterapia empírica com
antibióticos de amplo espectro, até que o resultado do antibiograma esteja disponível.
Segundo a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, a recomendação é
utilização de vancomicina em combinação com piperacilina-tazobactam, ou carbapenêmicos.
Pode-se também incluir a clindamicina, por conta do seu efeito sobre toxinas
liberadas pelas principais bactérias que causam a doença. Estudos ainda estão
em andamento sobre a utilização da oxigenoterapia hiperbárica (OH) e o uso de
imunoglobulinas.
Referências bibliográficas:
Schechter
M., Marangoni, D. V. Doenças Infecciosas: conduta diagnóstica e terapêutica.
Rio de Janeiro : GUANABARA KOOGAN, 1994.
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Acesso em 16/02/2021.
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